Que tal processar Tufão pela Lei Maria da Penha?
Leonardo Sakamoto
Eu era viciado em novelas – na época de Vamp… Hoje, prefiro dedicar
a parte livre do meu tempo a reprises de House (que Deus o tenha), Big
Bang Theory (nerd, eu?) ou Newsroom (sublime). Ontem, por acidente,
acabei assistindo a um capítulo de Avenida Brasil, logo no momento em
que o mocinho da novela sentava a mão na cara de Carminha – a megera.
Desde então, protestos ganharam as redes sociais por conta da força
simbólica de um homem traído agredir a sua companheira.
Muitos telespectadores sentiram-se vingados com a vilã levando uns
tabefes. Compadeciam-se de Tufão e acharam que a personagem de Adriana
Esteves recebeu o que merecia. Mas o que passa pela cabeça do sujeito
em casa, que cresceu em uma sociedade machista como a nossa, quando vê
um dos heróis da trama empregando violência doméstica? Provavelmente,
vê reafirmado o mesmo modelo de comportamento que conhece desde que era
um mancebo e que vem sendo questionado pela sociedade a conta-gotas. Se
o Murilo Benício, que é o cara, pode, por que eu não?
Se fosse o vilão seria diferente? Em parte, sim, porque isso seria
visto como uma ação ruim. Sei que a vida não é preto no branco – há
muitos tons de cinza no meio do caminho. Mas esses folhetins
televisivos são produzidos simplificando relações humanas, construindo
um lado para que possamos torcer, acolher e nos identificar.
Algumas pessoas vão afirmar que uma novela pode até ser baseada em
situações da vida real, mas é uma peça de ficção, com a arte
alimentando-se da vida. Sabemos, contudo, que o processo não é de mão
única, mas circular. A arte também serve para organizar a vida,
reafirmando elementos simbólicos, ensinando padrões de comportamento e
estruturando o dia a dia.
Esse sentimento de vingança que deve ter tomado parte dos
telespectadores é semelhante – guardadas as devidas proporções – às
cenas finais de Dogville, de Lars von Trier. Quando a personagem de
Nicole Kidman comanda o massacre na pequena cidade que a humilhou,
escravizou e estuprou durante todo o filme, matando homens, mulheres e
crianças com requintes de crueldade, não foram poucas as pessoas no
cinema que sentiram um calor percorrer o seu corpo. Acreditavam que era
o sentimento de Justiça. Porém, pouco tempo depois, surgia, no lugar,
um calafrio de vergonha ao perceber que não era Justiça, mas vingança
em seu estado mais selvagem que as possuíra minutos antes. Com isso, o
diretor conseguiu mostrar o quanto a parte mais bizarra de nossa
programação ainda age em nós e como é longo o caminho para domá-la e
desligá-la. Não individualmente, mas como coletivo, como sociedade.
Somos programados, desde pequenos, para que homens sejam agressivos.
Ganhamos armas de brinquedo, espadas, luvas de boxe. Raramente a nós é
dado o direito de que consideremos normal oferecer carinho e afeto para
outro amigo em público. Ou de chorar e se fechar diante da tristeza.
Manifestar nossos sentimentos é coisa de mulherzinha. Ou, pior, de
“bicha”. De quem está fora do seu papel. Lavar a honra com sangue ou
com porrada, pode. Bater em “vadia” pode. Em “bicha” pode. Em
“maconheiro” pode. Em “mendigo” pode. E por que não em índio? Em
vagabundo. Em sem-terra. Em sem-teto.
As pessoas envolvidas em casos de violência contra mulheres colocam
em prática o que devem ter ouvido a vida inteira: quem não se enquadra
em um padrão moral que nos foi empurrado – e que não obedece à
hegemonia masculina, heterossexual e cristã – é a corja da sociedade e
age para corromper o nosso modo de vida e tornar a existência dos
“cidadãos de bem” um inferno. Seres que nos ameaçam com sua liberdade,
que não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos “homens de bem”.
Quando uma mulher tem uma relação extraconjugal, o coletivo não a
agride por ter rompido unilateralmente um acordo interno do casal, mas
por ter desrespeitado uma regra social que todas as outras pessoas
estão obrigadas a obedecer. Quem é ela para achar que pode ser melhor
do que os outros?
Uma amiga pediu a aplicação da Lei Maria da Penha para o Tufão. Em
1983, o ex-marido de Maria da Penha – o covarde Marco Antônio Herredia
Viveiros – atirou nas costas da esposa e depois tentou eletrocutá-la.
Não conseguiu matá-la, mas a deixou paraplégica. Muitos anos de
impunidade depois, ele pegou seis anos de prisão, mas ficou pouco tempo
atrás das grades. A sua busca por justiça tornou-a símbolo da luta
contra a violência doméstica. E, em agosto de 2006, foi sancionada a
lei 11.340, a Lei Maria da Penha, para combater crimes dessa natureza.
O STF, posteriormente, ampliou as possibilidades da lei, afirmando que
é desnecessária a denúncia da agredida para que o processo seja aberto.
A caminhada que a lei teve que percorrer até aqui é dura e ingrata.
Lembro de um juiz de Sete Lagoas (MG) que rejeitou uma série de pedidos
de medidas, baseadas na Lei Maria da Penha, contra homens que agrediram
e ameaçaram suas parceiras. Edilson Rodrigues afirmou em suas
sentenças: “Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas
dessa lei absurda, o homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de
se ver na contingência de ter de ceder facilmente às pressões.” E
ainda: “A vingar esse conjunto de regras diabólicas, a família estará
em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras,
porque sem pais; o homem subjugado”.
Ainda bem que as decisões do Supremo sobre a interpretação da
Constituição Federal visando à garantia de direitos humanos não são
tomadas com base em pesquisas de opinião ou para onde sopra a opinião
pública em determinado momento. Principalmente em finais de novela.
Em uma sociedade que canta um “tapinha não dói” e se sente vingada
quando alguém que teve uma relação extraconjugal apanha em rede
nacional, a Lei Maria da Penha é uma lufada de ar fresco. Mais do que
apenas punição, é didática. Mas, como já disse aqui, deixou uma manada
de babacas irritadíssimos com uma suposta “interferência do Estado na
vida privada”. Afinal de contas, quem vocês pensam que são? Eu bato na
minha mulher/filha/mãe/irmã na hora que quiser e com o objeto que
quiser!
A esses, o meu desprezo. Bem como ao mocinho (sic) da novela."
Publicado originalmente em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/10/09/que-tal-processar-tufao-pela-lei-maria-da-penha/
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